À discente que jubilou-me
Sou o portador dos olhos de ressaca.
Eis aqui quem traiu o desejo, por tempos desprezou o arrimo companheiro para afogar-se nas ondas dos livros, tombando enfados escritos, inquéritos enguiços...
Certamente permanecerás intrigado por não revelar-lhe onde e qual conteúdo ministrei, ainda assim digo-te que é em um lugar tão frio e distante, talvez despercebido, quem sabe por ti seja conhecido! Só em rememorar sinto calafrio, recordar é hobbie passadio, atente a causa de meu findo vazio...
A chuva nos tem castigado e não tem amenizado meus dias de Doutor cansado, nem tem regado a secura dos asilos clamores, só resta à colcha retalhar insônias sem descanso, e como as Fiandeiras da vida eu canso!
Minhas mãos trêmulas, meu ar fatigado, ombros exaustos, suor em olheiras de sapiência, remelando letras e lagrimáridas descomedidas pelo corpo doído, bengalando pedras-pernas mais que maduras.
As aulas recomeçam, as turmas verde-novatas contrastam-se com a sarcófaga ementa, endêmica burocracia, momices de supremacia, garatujas de vocabulário, galhofas de honorário. Assuntos mesmos, por mais que inovem-se as discussões. Não há força no Mestre, jaz o fragor do educar, resta-lhe o silenciar...
Minha robustez fora do normal roja o giz dos primeiros temas, acarretando em outros e muitos outros fartando a lousa.
Outro dia de timidez.
Outra semana de morbidez.
Outro mês de enfado,
É a cruel maré do meu fado...
Novamente o desânimo muletando a fadiga. Minha face calada e metida consigo, contínua introspecção teimosa e obstinada. Como será cruel ver esclerosar meus pensamentos, submissos à derrocada na funda cova que abrigará a parte do meu latifúndio, meu ocular-defunto rosnando cego na tumba macabra da sofreguidão. Oxalá seja apenas superstição!
Vejo os dias do versado lesmarem na poeira do quadro, no perempto semblante, na rústica janela da caduca Universidade.
Foi naquela estação tão chuvosa, semana nebulosa, taciturna, sexta-13-noturna. Eles certamente esperavam o catedrático pelo corredor, cismaram por certo com minha ausência de pontualidade. Engrossa a tempestade e devem ter contado as horas em seus desconfortáveis assentos. Aguardavam o famoso, solitário e poético Mestre que nunca faltou.
Das sombras do corredor percebi o movimento dos lábios cochichosos, enquanto meu vulto sáfaro-morigerado crescia com o compasso dos sapatos, a ansiedade da marcha, meu desejo rendoso pela chegada.
Entramos.
Meu ser franzino engordado pelas gotículas da chuva. Meu alívio em vê-los. Minha relutância pela despedida acadêmica. A satisfação sentida por me corresponderem, perdoando-me com o fitar da mocidade cintilante, desconsiderando meu atraso. O encharco lubrificou minha aparência idosasombria, o brilho escondido da prata dos fios, da barba feita, o duelo do tempo enfastiado querendo sucumbir o ocaso de meu quase-último-fôlego. Fiquei a observá-los, mas algo interromperia nosso pacto institucionalizado.
Procurei-a, logo deixei correr os olhos em cada parte da sala e a vimos estáticos entrar calmamente com o lenço nos braços. Ela aproximou-se do birô, retirou minha capa molhada, os antigos óculos e iniciou o cerimonial pela face ancestral. Suas mãos participaram secando a boca, os dedos, os cabelos, aquecendo quase que toda extensão e forma fatigada. Apenas fechei os olhos, desfaleci em suas tranças macias a enxugar bem excitada minha espádua, carinhando lábios e pescoço, sussurrando ao ouvido, num transpirar comovido. Meu frisson docente agonizou no orbe daquele ensejo, fez cataclismo em meus olvidados, aziagos e ignotos sentidos, num gozo sidérico causando a subversão da minha federação.
Nunca mais fui o mesmo, estou a vagar pelo universo do futrico alheio, sendo escanteado para o derradeiro, rumo ao limbo da profissão, moedas ao Caronte da educação, meu mérito por opção. Enquanto os doutos aprontam carcaças caiadas para oprimir, sinto paz ao dormir, coito noites de sorrir... Quisera eu fosse sonho ou devaneio, mas aposentei-me osculando o discente seio.
Por Flor dos Anjos
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